O Livro Divina
"Nós não sentimos necessidade de apoios e alianças, tendo em mãos, para nosso conforto, os livros sagrados" (1 Mac 12:9). Assim, em 154 a.C., em nome de toda a nação, da qual era chefe, escrevia Jônatas Macabeu ao rei de Esparta. Nessas suas palavras, já se apresenta o termo usual, o valor singular e o emprego prático da obra cuja versão apresentamos. Do termo: os livros - no texto grego um neutro plural tà biblía - em nossa língua, através do latim vulgar, formou-se o feminino singular: a Bíblia.
Outros sinônimos, encontramo-los freqüentemente na própria Bíblia: a Escritura ou as Escrituras, as santas Escrituras, e mais raramente, as sagradas Letras. A Bíblia, portanto, não é um livro só, mas muitos, uma coletânea, cuja unidade consiste no argumento comum e na origem sobre-humana.
É de "livros santos" que a Bíblia se compõe, porque dentro de sua grande variedade eles coincidem em tratar de religião, tendo um objetivo essencialmente religioso. Com mais razão ainda chamam-se "livros santos" ou "sagrados" porque, como ensina a fé, tanto judaica como cristã, não foram escritos por mero talento humano, mas sob a influência de inspiração divina especial.
É desta origem sobrenatural que a Bíblia recebe a sua dignidade de "livro por excelência," e o seu lugar único na vida dos povos que tiveram o primado na civilização. Ela é, com efeito, o fundamento e o alimento da fé para todos os povos cristãos, e nenhum outro livro no mundo pode ser a ela comparado, nem de longe, seja pelo número de tiragens de edições, quer manuscritas, quer impressas, seja pela influência sobre a vida individual e pública, sobre a literatura e as artes figurativas. Qualquer fiel sinceramente apegado. à sua religião tem-na, por assim dizer, constantemente em mão, como Jônatas o apontava, para nela encontrar conforto em todas as vicissitudes da vida.
Espalham-se pelo mundo além muitos milhões de livros exarados em todas as línguas cultas. As livrarias e as bibliotecas estão cheias de obras literárias que o espírito humano não cessa de escrever e de editar.
Já antes que fosse inventada a arte de gravar na matéria pensamentos, e idéias, certas mentalidades mais argutas produziam lendas, narrativas, provérbios geralmente em forma poética e transmitiam a outros essas suas obras que eram divulgadas oralmente. Não poucas dessas obras lograram perpetuar-se na memória de muitas gerações até que afinal foram fixadas por escrito. Mas foi principalmente depois que os egípcios inventaram os seus hieróglifos e os suméricos a escritura cuneiforme que os livros começaram a multiplicarem-se prodigiosamente.
Quem escreve, tira algo de si mesmo e grava nas linhas que traça. O livro encerra em si e manifesta a alma do autor. Desta forma infelizmente, uma boa parte dos escritos humanos apresenta a triste senha da natureza corrompida dos mortais: o erro, delimitações mentais, desejos e planos egoístas e inconfessáveis...
Mas há também outros muitos livros que se avantajam incontestavelmente pela profunda erudição e pela admirável prudência de seus autores. São obras que de si irradiam esplendores da verdade e os mais sábios conselhos para uma vida melhor.
Entretanto, mesmo neste último caso, trata-se sempre de lucubrações de mentalidades humanas que dificilmente conseguem desvencilhar-se um pouco das trevas que as envolvem.
Um único livro distingue-se de todos os outros pela autoria divina que reivindica para si: a Bíblia sagrada. Os judeus na antiguidade desde cerca de mil e quinhentos anos antes de Cristo e, em seguida, os cristãos aceitam e proclamam essa verdade: As Sagradas Escrituras procedem do próprio Deus.
Os ateus e os deistas que negam a interferência de Deus na evolução humana recebem este testemunho com desdém ou terminante recusa. Para eles a Bíblia é uma obra meramente humana, quiçá venerável pela antiguidade, mas saída da acanhada mentalidade judaica.
Felizes os que têm a dita da fé! Estes admitem e professam a divina autoria da Bíblia como um artigo do conteúdo da revelação. Sabem perfeitamente que foram homens que escreveram os vários livros de que ela se compõe, mas afirmam com absoluta certeza que esses mesmos homens, os chamados hagiógrafos pela graça da inspiração que receberam eram simples instrumentos humanos nas mãos de Deus.
Eis o que passamos a expor!
Livro divino, já por este titulo a Bíblia deve ser considerada como o Livro-Rei entre todos os livros. Mas a primazia lhe toca também se atendermos à sua origem e à sua evolução pelo mundo através dos séculos.
Não foi num ano, nem num século que a Bíblia foi escrita. Desde Moisés, o seu primeiro autor, até São João evangelista decorreu um espaço de um milênio e meio. Com incrível tenacidade os hagiógrafos foram escrevendo as suas páginas muitas vezes nas circunstancias mais penosas.
A principio os seus primeiros livros permaneceram dentro dos acanhados limites da palestina. Escritos em hebraico eram acessíveis apenas aos poucos milhões de judeus que dominavam essa réstia de terra entre o mar Mediterrâneo e o Jordão.
Mas o seu destino era abarcar o mundo inteiro. Já cerca de duzentos anos antes de Cristo apareceu no Egito a primeira tradução do Livro inspirado para a língua grega então falada em toda a parte, a chamada Koiné. A Bíblia estava agora aberta aos olhos de todos os povos do mundo então conhecido.
Foi desse grego vulgar que a providencia se serviu para a divulgação da sua Palavra. Para essa língua foram vertidos nos séculos seguintes os outros livros da Antiga Lei inspirados pouco antes da era cristã. Os autores dos dois livros: o segundo dos Macabeus e a Sabedoria, embora judeus de origem, já se utilizaram mesmo do grego para escreverem as suas obras.
Quanto ao novo testamento é notório que só o Evangelho de São Mateus, todo ele foi exarado nessa mesma Koiné.
Os judeus e os cristãos não permaneceram na Palestina. Espalharam-se por todos os paises do mundo e consigo levaram o seu Livro sagrado. Os seus milhões de adeptos, mormente os cristãos puseram-se a ler e estudar com afinco as suas páginas sagradas.
Como é natural, embora conhecessem o grego, foram querendo possuir a Bíblia nas suas próprias línguas. Surgiram assim as traduções sírias e latinas: a chamada Pechito em sírio e as antigas Ítalas em latim, seguidas estas da tradução denominada Vulgata que se origina de São Jerônimo e perdura até a época presente.
Desde a Idade Media os muitos povos europeus que já mal compreendiam o latim, foram sentindo a necessidade de poderem ler a Bíblia em suas línguas maternas. Não tardaram as traduções que foram sendo feitas dos textos latinos. De lá até os nossos dias enumeram-se cerca de mil traduções da Bíblia para todas as línguas e dialetos conhecidos. Desta forma as Sagradas Escrituras são o livro mais vezes traduzido.
Igualmente elas têm sido o livro mais vezes editado. Na antiguidade antes que se conhecesse a arte tipográfica, milhares de pessoas davam-se ao trabalho de copia-las cuidadosamente. Ainda hoje existem nas bibliotecas e museus da Europa mais de mil e quinhentos manuscritos em grego e em latim. Depois de Gutenberg não tem numero as edições que em todas as nações se vão sucedendo anualmente umas às outras.
A ação destruidora dos tempos consumiu a grande maioria das obras literárias antigas. A Bíblia vem-lhe resistindo tenazmente. Ainda hoje cerca da metade dos homens, ou seja, um bilhão de pessoas a lêem e meditam com assiduidade e profundo respeito. As suas paginas sagradas continuam espargindo luz e conforto no meio da tremenda confusão da hora presente.
divinas em geral
A Bíblia é um livro de fé. Os seus autores humanos e os seus leitores são homens de vivas convicções religiosas que folgam em crer na existência de um Deus pessoal e nas comunicações que Ele prodigaliza às suas criaturas humanas enquanto vivem na terra.
Quem não pode elevar-se às alturas da fé, fechando-se nas suas concepções materialistas do universo, debalde o tomará em suas mãos. Falta-lhe a predisposição necessária para a sua compreensão. É essa virtude infusa da fé que nos introduz nos arcanos da Providência divina que, dando ao homem uma finalidade sobrenatural, com Ele se comunica para que mais facilmente a consiga.
Dentre as comunicações divinas distinguem-se as revelações em geral e a inspiração para escrever com a qual nos ocupamos aqui mais de perto. Quanto às primeiras escreve São Paulo aos Hebreus (1:1): "Outrora Deus falou muitas vezes e de muitos modos aos pais pelos profetas; ultimamente falou-nos pelo seu Filho." Com efeito, a própria Bíblia menciona não poucas revelações com as quais Deus agraciou determinadas pessoas, nomeadamente os patriarcas Abraão e Jacó, bem como os muitos profetas da Antiga Lei.
Essas comunicações Divinas consistiam na parte de quem as receberam em tantas percepções individuais e em fenômenos psíquicos que, salvo em casos excepcionais, não podiam ser observados por outras pessoas.
Por vezes Deus parece ter assumido uma forma humana para revelar-se aos homens. Assim a Adão no paraíso terrestre (Gen. 3:8) ou manifestando-se a Abraão (Gen. 19:1). De outras feitas ele atuou pela sua graça sobre os sentidos ou simplesmente sobre a fantasia dos seus agraciados, fazendo-os ver ou ouvir o que lhes queria comunicar. É também possível que a certos profetas Deus se tenha revelado apenas mediante uma íntima convicção de estarem recebendo as suas mensagens. Provavelmente é o que aconteceu quando os profetas declaram nos seus oráculos que falavam em nome de Deus: "Assim fala o Senhor Jave..."
A autenticidade dessas revelações era testemunhada pela extraordinária personalidade dos videntes. Outras vezes milagres e prodígios, bem como a realização de suas predições, credenciavam-nos aos olhos dos circunstantes.
Especialíssima comunicação divina aos homens consiste na inspiração dos livros que compõe a Bíblia. Trata-se de um maravilhoso dom da Sabedoria e da Providencia de Deus que por esse meio quer se comunicar diretamente não só com alguns poucos eleitos seus, como eram os profetas, mas com todos aqueles que tem fé e procuram por Ele em seus anseios da salvação.
O conceito da inspiração bíblica deparasse-nos perfeitamente esclarecido tanto na própria Bíblia, como na tradição e nas declarações autenticas da Igreja. Nos Livros sagrados não são muitos os trechos que se referem à sua origem divina. Mas os dois seguintes versículos são suficientes para iniciar-nos na sua intima natureza.
O primeiro encontra-se na 2 Tim 5:16. Ensina ai São Paulo textualmente que "toda a escritura é divinamente inspirada." É de notar-se que o termo grego original theópneustos (de theós, Deus e pneumó, soprar) tem um sentido explicativo: um livro soprado ou inspirado por Deus. Para o Apóstolo os livros sagrados eram formados e repletos pelo espírito de Deus de modo análogo ao vidro que ao sair da fornalha se infla todo como um balão ao sopro que lhe é comunicado.
O segundo texto lê em 2 Pedro 1:20-21. Escreve São Pedro que "não foi pela vontade de algum homem que as profecias foram feitas; e sim pelo Espírito Santo foi que os homens de Deus falaram." Esta frase do Príncipe dos Apóstolos aparece-nos em conjunto com as suas reminiscências da visão do Tabor. Para ele a "palavra profética" ou todo o Antigo Testamento era um documento divino ainda mais "firme" da verdade que ele pregava do que os acontecimentos da "montanha santa."
Baseando-se nestes textos da Bíblia, os Escritos eclesiásticos que nos testemunham a tradição, atribuíram unanimemente os Livros sagrados a Deus mesmo. Os hagiógrafos foram apenas instrumentos nas suas mãos, a semelhança de uma flauta ou lira das quais um artista tira os acordes. De acordo com esta definição, como escreve J. Renié, "a inspiração pode ser considerada sob um tríplice aspecto: em Deus, como no seu autor; é a inspiração ativa; no homem que a recebe; é a inspiração passiva; e no livro, como no seu termo."
Considerada em Deus, a inspiração é uma operação comum às três divinas Pessoas, atribuída por apropriação ao Espírito. Essa ação é produzida num agente dotado de inteligência e de liberdade, como um concurso divino.O homem nenhum direito tem a esse concurso; o dom da inspiração é inteiramente gratuito e, como se diz em teologia, uma graça grátis data, que não visa diretamente a santificação de quem a recebe, mas o bem geral. Trata-se de uma graça eficaz que determina quem a recebe a seguir o seu impulso, sem, contudo tolher-lhe a liberdade e de caráter transitório, persistindo apenas a realização da obra inspirada.
Considerada no hagiógrafo, a graça da inspiração consegue um tríplice efeito: ilumina as faculdades intelectuais, move a vontade e assiste em geral todo homem na composição do livro a escrever.
Iluminando a mente do hagiógrafo, Deus nem sempre lhe sugere os pensamentos e idéias que devem entrar na composição da obra. A matéria que deve ser escrita pode ser adquirida por um esforço natural, como se depreende dos prólogos do Eclesiástico e de São Lucas. Contudo mesmo nesse caso a assistência divina o guia e esclarece. Mas nada impede que por vezes Deus tenha indicado ao hagiógrafo por especial revelação o que ele quer escrever, como certamente aconteceu quando os profetas escreviam os seus oráculos. Nestes casos coincidiam revelação e inspiração.
Pela iluminação divina a mente do hagiógrafo percebe melhor a verdade e o laço que liga várias verdades e consegue formar um juízo ainda mais seguro sobre pontos que já conhecia por uma particular penetração, uma clareza e uma certeza que entregue a si mesmo dificilmente chegaria a ter. Tais juízos tornam-se infalíveis.
Entretanto sob a influência desta iluminação, o hagiógrafo não se torna meramente passivo. Ele é sempre um instrumento humano. As idéias são moldadas à sua inteligência e expressas de acordo com o seu estilo próprio, como veremos adiante.
A graça da inspiração move a vontade do hagiógrafo e a determina a escrever. É por este impulso físico que Deus toma a si a iniciativa da obra a ser escrita e sobrenaturaliza a ação do hagiógrafo.Uma simples moção moral não bastaria para que Deus fosse realmente o autor do Livro inspirado. Ele o teria apenas sugerido.
Por fim a mesma graça que ilumina a inteligência e move a vontade do hagiógrafo, presta-lhe contínua assistência durante a elaboração do Livro pra que ele exprima de um modo fiel, embora particular seu, os conceitos formados na sua mente.
Considerada no livro escrito, a inspiração tem por efeito torna-lo a palavra autêntica de Deus com todas as conseqüências. Palavra infalível pela qual ele se comunica diretamente com os seus leitores que crêem e a ele se elevam por meio dessa leitura.
Sob o impulso da graça da inspiração o autor humano põe-se a escrever perfeitamente consciente da parte ativa que lhe toca na elaboração da obra.
Poderíamos questionar se ele teve sempre consciência de estar sendo inspirado por Deus. A resposta parece dever ser negativa. Consiste pois a inspiração numa moção do Espírito Santo; ora em geral nem sequer percebemos em nós mesmos o concurso divino. Entretanto, lendo os profetas, como Moisés e São João no apocalipse, temos a impressão de que esses homens de Deus tinham uma clara noção de estarem falando em nome de Deus.
Em todo caso, a sua contribuição para o Livro inspirado foi a de um simples instrumento, embora de um instrumento humano.
Deus não ditou ao hagiógrafo o que este devia escrever. Vejamos uma comparação. Para escrever tomo um lápis na mão. Ora quem é que escreve: Eu ou o lápis? Naturalmente o lápis segue apenas o impulso que minha mão lhe dá. O lápis por si não se movimenta, mas também a mão sem ele não pode traçar as letras. A mão é a responsável pela verdade expressa; o lápis influencia apenas na formação da escrita com a sua cor e propriedades.
Algo de semelhante dá-se quanto à inspiração da Bíblia. Deus é quem dá o impulso para escrever e portanto é o autor principal e responsável; o hagiógrafo contribui com a sua linguagem e fraseologia próprias. Assim falando-nos Deus por Isaias, utilizou-se do estilo sublime e grandíloquo deste grande poeta; nos oráculos de Amós, o pastor de Técua, exprimiu-se na rude linguagem de uma mentalidade pouco culta.
A Sabedoria divina quis comunicar-se aos homens de um modo inteiramente humano, condescendendo a falar-nos em nossa linguagem que nos fosse afeita e compreensível. Enaltece São João Crisóstomo essa Maravilhosa condescendência divina que se manifesta em toda Bíblia.
Com efeito, descobrimos nos vários Livros inspirados a maior diversidade de gêneros literários: a prosa e a poesia, livros fáceis e quase pueris, tratados complicadíssimos e profundos e descrições correntes e ao alcance de qualquer pessoa.
Escreveram os monges de Maredsous: "Folheai a vossa Bíblia e encontrareis":
o Livros históricos e verdadeiras crônicas, como os Livros dos Reis.
o Coleções de leis, como no Êxodo e no Levítico.
o Poesias religiosas e cânticos litúrgicos, como nos salmos.
o Narrações romanceadas: em Tobias, Éster e Judite.
o Diálogos, como no Livro de Jô.
o Tentames Filosóficos, como nos Livros sapienciais.
o Cantos amorosos, como no Livro dos Cantares.
o Poemas éticos e patrióticos, como na historia de Sansão.
o Oráculos proféticos, como em Isaias e demais profetas.
o Livros meramente históricos e doutrinais, como os Evangelhos.
o Escritos ascéticos e tratados de espiritualidade cristã, como nas Epistolas dos Apóstolos.
o Enfim o estilo apocalíptico que com chave de ouro fecha toda a Bíblia, como nas cisões de São João.
Ai temos uma biblioteca inteira! É sempre o mesmo Deus quem escreve, mas a sua Palavra transparece do estilo de cada autor por Ele inspirado.
Cânon
Com o nome de Bíblia, pois, compreendem-se os livros sagrados da religião cujo centro é Jesus Cristo. Partindo deste ponto de convergência, a Bíblia divide-se em duas séries desiguais, a primeira, anterior a Jesus Cristo, a segunda, posterior. A primeira chama-se Antigo Testamento, a segunda Novo Testamento, conceito e vocábulo esses tomados da própria Bíblia.
O Antigo Testamento consta dos livros seguintes, comumente agrupados em quatro classes:
· Pentateuco ou cinco livros de Moisés: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.
· Livros históricos: Josué, Juízes, Rute, Reis, Crônicas, Esdras e Neemias, Tobias, Judite, Ester, Macabeus.
· Livros didáticos ou poéticos: Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Sabedoria, Eclesiástico (ou Sabedoria de Jesus, filho de Sirac).
· Livros proféticos: Isaías, Jeremias, Lamentações, Baruc, Ezequiel, Daniel, os Doze profetas menores, isto é: Amós, Oséias, Joel, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias.
No Novo Testamento, o primeiro e mais conspícuo lugar compete aos quatro Evangelhos: segundo Mateus, Marcos, Lucas, João. Seguem-se: um livro histórico, os Atos dos Apóstolos; catorze epístolas de S. Paulo: aos Romanos, duas aos Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, duas aos Tessalonicenses, duas a Timóteo, uma a Tito, a Filêmon, aos Hebreus; sete epístolas chamadas católicas, ou canônicas: uma de Tiago, duas de Pedro, três de João, uma de Judas; finalmente, um livro profético, o Apocalipse.
O elenco oficial dos livros sagrados chama-se cânon, no sentido de norma. Expusemos aqui o cânon católico, formado já no séc. IV nas cartas pontifícias e nos concílios provinciais da África. Para a integridade do cânon não importa a ordem dos livros, porque, exceto o primeiro lugar reservado constantemente, no Antigo Testamento, ao Pentateuco e no Novo, aos Evangelhos, no restante diferem muito entre si os manuscritos, os autores, os catálogos oficiais de igrejas e de seitas. Os livros históricos mais extensos do Antigo Testamento, Samuel-Reis e Crônicas, na antiqüíssima versão grega (dos LXX, veja abaixo), por razões práticas foram divididos em dois; além disso, considerando Samuel e Reis como uma obra só, chegou-se a contar 4 livros dos Reis e dois das Crônicas, costume esse que se estendeu aos latinos e dura ainda em parte entre nós. No texto hebraico, adotada semelhante divisão, conhecem-se dois livros de Samuel, dois dos Reis, dois das Crônicas. Esdras e Neemias são chamados também de primeiro e, segundo de Esdras. Também dos Macabeus contam-se dois livros, que na realidade são duas obras perfeitamente distintas. Na Vulgata, a Carta de Jeremias constitui o último cap. (6°) de Baruc. Tudo bens calculado, o Antigo Testamento consta de quarenta e seis livros, o Novo, de vinte e sete.
Por razões igualmente práticas, desde os primeiros séculos da nossa era, cada livro foi dividido em seções de várias extensões, conforme sistemas bastante diversos para lugares e épocas. Para eliminar os inconvenientes dessas antigas divisões e facilitar o estudo uniforme, no início do séc. XIII, na Universidade de Paris, Estêvão Langton introduziu a divisão em capítulos de extensão mediana, que depois, pela sua utilidade prática, propagou-se em todas as escolas e em todas as edições, e é ainda hoje de uso universal, agora insubstituível.
Mais tarde, no séc. XVI, os mesmos capítulos foram divididos em versículos numerados (por Sante Pagnini, para o Antigo Testamento [1528], por Roberto Estêvão, para o Novo [1550]), tendo sido também essa numeração, pela comodidade das citações, aceita logo e perdura até agora em toda parte. Entende-se, entretanto, que essas divisões são apenas de valor prático, não científico.
dos Livros Inspirados
Imediata e necessária conseqüência da inspiração da Bíblia é a sua absoluta inerrância ou infalibilidade. Jamais poderíamos compreender ou admitir que um Livro, escrito pela absoluta Verdade que é Deus, possa conter a mais leve inverdade naquilo que ensina, ou uma verdadeira contradição, ou ainda um engano propriamente dito.
A inerrância das escrituras foi sempre mantida por toda a tradição cristã consoante a palavra do divino Mestre: "A Escritura não pode ser posta em duvida" (Jô 10:35).
Todo aquele que crê, deve fazer suas as conhecidas palavras de Santo Agostinho quando escrevia a São Jerônimo: "Confesso a vossa caridade que aprendi a só conceder aos Livros da Escritura que chamamos canônicos a reverencia e a honra de crer firmemente que nenhum dos seus autores (humanos) pôde escrever erro algum. E se eu achasse nessas santas Letras alguma passagem que me parecesse contraria à verdade não hesitaria em afirmar ou que o manuscrito é defeituoso, ou que o interprete (ou tradutor) não seguiu exatamente o texto, ou que eu não compreendo bem."
Os problemas concernentes à inerrância das Escrituras podem e devem ser considerados como a questão bíblica por excelência. Está tão intimamente ligada com a inspiração que da sua solução depende a nossa certeza da própria inspiração divina de um livro.
Entretanto não poucas dificuldades parecem à primeira vista opor-se a esta verdade. Originam-se elas:
De certas afirmações dos hagiógrafos quanto às ciências naturais. Os conceitos da ciência cosmológica, geológica, biológica têm progredido imensamente no decorrer do tempo e forçosamente divergem dos que estavam em voga nos tempos bíblicos. Assim vigorava antigamente a idéia da centricidade da terra relativamente aos astros do céu, inclusive o sol, era natural que os homens se exprimissem deste modo. Entretanto os hagiógrafos, acomodando-se as expressões comuns então, nada afirmam positivamente a esse respeito. Falam apenas de acordo com as aparências.
Quanto aos fatos históricos, não são poucos os textos sacros de difícil explicação. Autores tem havido de incontestável competência que nos últimos decênios opinaram que também neste ponto os escritores sacros se possam ter acomodado ao que chamaram "aparências históricas." Como é natural, a Igreja reprovou semelhante subterfúgio para explicar as dificuldades desta ordem. A historia está tão intimamente ligada com os dogmas da economia divina da salvação dos homens que a sua veracidade se torna imprescindível para a afirmação dos mesmos dogmas.
Nas duvidas de caráter histórico toca ao exegeta estudar mais detalhadamente os fatos sobre todos os aspectos possíveis. É incontestável que as ultimas descobertas no Egito e na Mesopotâmia tem projetado muita luz em pontos controvertidos e o resultado tem sido que todas elas convergem para demonstrar a verdade histórica da Bíblia.
Outras dificuldades muitas encontram a sua plena solução no detido estudo do estilo próprio dos autores orientais e semíticos. Foi a errônea interpretação deste estilo popular, figurado, alegórico que introduziu problemas onde na realidade não havia.
e cânones diversos
O Novo Testamento inteiro foi escrito em grego; só o Evangelho de Mateus, conforme testemunhos de antigos, teve uma primeira redação em aramaico, a qual, porém, se perdeu sem deixar vestígios; em lugar dela temos uma tradução, ou melhor, uma redação grega.
Quanto ao Antigo Testamento, temos três idiomas originais. A maior parte foi escrita e chegou até nós em língua hebraica. Alguns capítulos dos livros de Esdras e de Daniel, e um versículo de Jeremias, estão em aramaico, que foi o idioma falado na Palestina depois do exílio babilônico (séc. VI a.C.). Dois livros, o segundo dos Macabeus e a Sabedoria, foram escritos originariamente em grego. Dos livros de Judite, Tobias, Baruc, Eclesiástico e parte também de Daniel e Ester, perdeu-se, como no caso do Evangelho de Mateus, o texto original, hebraico ou aramaico, sendo substituído pela versão grega.
Essas diferenças lingüísticas não deixaram de exercer a sua influência sobre a extensão do cânon dos livros sagrados. Enquanto os judeus disseminados no mundo greco-romano não tinham dificuldades em introduzir os livros redigidos em grego, os judeus da Palestina não queriam conformar-se, com isso. Além disso, foi-se formando entre eles a opinião de que, depois de Esdras (séc. V a.C.), faltando ou sendo incerto o dom profético (veja 1 Mac 4:46; 14:41), nem sequer admitiam pudessem ser escritos livros inspirados por Deus. Por, isso, quando nos fins do séc. I d.C., os doutores da Sinagoga fixaram o cânon das Sagradas Escrituras, foram excluídos até os livros escritos em hebraico depois daquela época, como o Eclesiástico. Daí resultou um cânon hebraico em que faltam sete livros: Tobias, Judite, os dois dos Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc e a Carta de Jeremias, e mais algumas partes de Ester e de Daniel.
O veredito dos doutores hebreus não deixou de repercutir na Igreja cristã. Enquanto no uso comum se difundia o cânon mais pleno, concretizado na versão dos LXX, empregada e recomendada pelos apóstolos, alguns escritores (Melitão de Sardes, Sto. Atanásio de Alexandria, S. Gregório de Nazianzo, entre os gregos; Sto. Hilário de Poitiers, Rufino de Aquiléia e principalmente S. Jerônimo, entre os latinos) adotaram o cânon mais restrito dos hebreus, e, devido à autoridade desses antigos doutores cristãos.
No entanto, em virtude de tais vozes discordantes da crença comum, chegou-se a fazer distinção entre "livros reconhecidos" (homologúmenos), admitidos por todos (os do cânon hebraico), e "livros controversos" (antilogúmenos), não admitidos por todos, os oito acima enumerados, constantes do cânon cristão. Na terminologia moderna, os primeiros se chamam protocanônicos, os segundos deuterocanônicos, ou seja, canônicos de primeira e de, segunda época, à medida que a unanimidade a seu respeito foi alcançada logo no começo ou só mais tarde. Entende-se, porém, que, com esses vocábulos, não se queria distinguir o valor ou a autoridade das duas categorias de livros, e sim lembrar somente um fato histórico e servir para maior brevidade e clareza no tratamento destas matérias. Analogamente, no Novo Testamento, por outras razões, porém, alguns livros nem sempre foram admitidos, e nem em todas as Igrejas, entre as divinas Escrituras; tais como a Epístola aos Hebreus, a de Tiago, a segunda de Pedro, a segunda e terceira de João, a de Judas e o Apocalipse; aos quais, por isso, também se aplicou a designação de deuterocanônicos, no sentido explicado.
Tudo o que foi dito até aqui vale para os autores católicos. Compreende-se que os hebreus rejeitem, em sua totalidade, o Novo Testamento, além dos deuterocanônicos do Antigo. Os protestantes ocupam uma posição de meio termo. No Novo Testamento, depois das primeiras incertezas de seus fundadores admitiram integralmente e sem distinção o Cânon católico. No Antigo Testamento, ao invés, seguindo o cânon mais restrito dos hebreus, rejeitam, como fora da série dos livros sagrados, sob o nome de "apócrifos," os que nós chamamos deuterocanônicos.
Para os Ortodoxos, os apócrifos são certos livros antigos, semelhantes a livros bíblicos, quer do Novo, quer do Antigo Testamento, o mais das vezes atribuídos a personagens bíblicas, mas não inspirados, como os livros canônicos, e nem sempre escritos por pessoas fidedignas, nem de doutrina segura. Os apócrifos do Antigo Testamento são chamados "pseudo-epígrafos" pelos protestantes.
Todos os Padres e Doutores tiveram firmíssima persuasão de que as divinas Escrituras, quais saíram da pena dos autores sagrados, são inteiramente isentas de qualquer erro. Mas será que todas nos chegaram tais "quais saíram da pena dos autores sagrados?" Nenhum autógrafo, nem sequer do último dos autores inspirados, chegou até nós, como também o de nenhum escritor da antigüidade profana; só possuímos deles cópias remotas. Ora, os copistas não tiveram a assistência do Espírito Santo como os hagiógrafos, e enquanto copiavam à mão, era natural que se introduzissem no texto alterações de várias espécies. No longo período de 1500-3000 anos, desde as primeiras cópias até à invenção da imprensa (séc. XV), era moralmente impossível que dois exemplares de um mesmo livro, ao menos os mais extensos, fossem exatamente iguais, e Deus, que preservou de todo erro os originais dos livros sagrados, não quis obrigar-se a milhares de milagres que seriam necessários para que se conservassem intactas as cópias. Bastava conservar inalterada a substância do depósito da fé contido nos livros sagrados. E para tanto foi magnificamente providenciado, como precisamente nos ensina a história do texto.
Os textos originais da Bíblia, em particular os do Novo Testamento, são comprovados por tamanha abundância e Antigüidade de documentos, que também sob o aspecto da transmissão textual a Bíblia mantém o seu primado, o seu lugar eminente na literatura mundial. Confrontada aos mais célebres monumentos da literatura profana, tais corno as obras-primas da literatura grega e latina, ela brilha como o sol entre as estrelas. As obras de autores gregos e latinos, não raramente, nos chegaram num único manuscrito, e as mais afortunadas gloriam-se de algumas dezenas deles; os manuscritos do Novo Testamento, porém, contam-se às, centenas e aos milhares. Deles possuímos ainda códices inteiros em pergaminho, do século IV; com fragmentos de papiros podemos remontar aos séculos III e II, isto é, a menos de um ou dois séculos da morte dos autores, enquanto que para Cícero e Virgílio a distância das cópias mais antigas é de cinco ou seis séculos, para Homero de um milênio e mais. O testemunho da transmissão direta dos códices gregos é reforçado quer por antiqüíssimas versões - já no séc. II, como a antiga versão latina, quer pelas abundantes citações de escritores cristãos, a partir do séc. II. Ora, nesses antiqüíssimos testemunhos encontramos a máxima parte do texto das modernas versões. Verdade é que a própria quantidade de manuscritos (além de versões e citações) ocasionou, pela razão já dita. um número proporcionado de variantes, ou seja, de alterações; pretende-se que no Novo Testamento inteiro, em 150.000 palavras, haja 200.000 variantes, mas na maioria são minúcias que não atingem absolutamente o sentido. Ademais, a riqueza de documentação oferece à crítica meios mais eficientes para precisar o texto original. Segundo o cálculo de juizes tão competentes, sete oitavos de todo o Novo Testamento são transmitidos, concordemente, sem variantes, por todas as testemunhas. Quanto às variantes, somente a milésima parte atinge o sentido e só umas vinte assumem verdadeira importância. Nenhuma atinge a alguma verdade de fé. Auxiliados pela crítica textual podemos concluir, com os supracitados críticos, que o texto genuíno do Novo Testamento é assegurado não só na substância, mas também em quase todos os, minuciosos particulares.
Quanto ao Antigo Testamento, as coisas apresentam-se um pouco diversamente. Antes das recentes descobertas junto ao mar Morto (1947), os códices hebraicos conhecidos, não anteriores aos séculos VIII-X d.C., dependiam to. dos de uma recensão ou arquétipo do fim do séc. 1 d.C., posterior, portanto, a cinco ou mais séculos dos originais. Dessa fonte temos o texto consonântico, isto é, só as consoantes das palavras Hebraicas, segundo o uso das línguas semíticas, de não escreverem as vogais. Somente por volta do séc. VII d.C., para facilitar a leitura e para uso didático, foram inventados os sinais vocálicos e inseridos no texto, quando o hebraico tinha cessado há séculos (pelo séc. IV a.C.), de ser idioma falado. No longo período do séc. I ao X d.C., o texto hebraico foi objeto dos mais minuciosos e diligentes cuidados da parte dos rabinos, chamados massoretas (de massorá = tradição). E ao trabalho infatigável deles que se deve a conservação inalterável do texto e dos manuscritos tão uniformes que não apresentam senão caríssimas variantes e de leve monta. Também as antigas versões, com uma só exceção, quer as gregas do séc. II (Áquila, Símaco, Teodocião, dos quais contudo não nos chegaram senão fragmentos), quer a siríaca, chamada Pechitta, o Targum aramaico (também chamado paráfrase caldaica), e a latina de S. Jerônimo, sendo todas posteriores à recensão do séc. I, e dela dependentes, raras vezes supõem forma diversa do texto hebraico normal (massorético).
Tanto mais preciosa, em tais circunstâncias, é para nós a antiga versão grega, feita no Egito (mais exatamente, em Alexandria, motivo por que também é chamada "alexandrina") entre os séc. III e II a.C. Considerada até os tempos modernos como obra coletiva de setenta e dois doutos hebreus vindos para isso de Jerusalém, a pedido de Ptolomeu Filadelfo (285-247 a.C.), como narra uma pseudocarta de Aristéia, continua ainda a chamar-se a versão dos Setenta ou os Setenta (LXX). Na realidade, como mostra o exame interno, os tradutores foram muitos, traduzindo quem este, quem aquele livro, em épocas diversas, até que, reunidas as traduções, formou-se um Testamento totalmente grego, mais amplo do que o hebraico massorético, segundo o que acima foi dito. Entra aqui o testemunho - precioso pelo fato e pela época - do neto do autor do Eclesiástico, o qual, no prólogo de sua tradução da obra do avô, assevera ter ido ao Egito pelo ano XXXVIII do rei Evérgetes (cerca de 132 a.C). e ali já ter encontrado traduzidos em grego, a Lei (Pentateuco), os Profetas e os outros Escritos, isto é, as três partes em que os judeus dividem a sua Bíblia.
Assim, a versão grega dos LXX tem para nós valor de um manuscrito hebraico do séc. III a.C. ou mais antigo, representando um tipo de texto sensivelmente diferente, como o demonstra um confronto com o texto corrente na Palestina. Ela é para nós, portanto, o instrumento principal para a emenda crítica do texto hebraico. É, contudo, um instrumento de emprego freqüentemente delicado. Além de, por causa das divergências dos tradutores, alguns literais e até servis, outros mais livres, não termos um critério geral para remontar da tradução grega ao original hebraico, o próprio texto dos LXX, através de tantas vicissitudes de séculos, chegou-nos em manuscritos com tão grande número de variantes que nem sempre é fácil, entre essa selva de variantes, descobrir o texto genuíno.
Causaram enorme confusão, sem o querer, três recensões feitas no séc. III e difundidas largamente 'na Igreja grega. Um século depois, um ótimo perito e testemunha ocular dos fatos, S. Jerônimo (Prefação às Crônicas) escreve: "Alexandria com todo o Egito, nos seus LXX louva a obra de Hesíquio; de Constantinopla até Antioquia,usam-se os exemplares do mártir Luciano; as províncias situadas entre essas duas regiões lêem os códices palestinenses, elaborados por Orígenes e divulgados por Eusébio e Pânfilo; de modo que todo o orbe se debate entre esta tríplice variedade." Felizmente nos foi conservado em poucos manuscritos, sobretudo no famoso Vaticano 1209 (assinalado com a sigla B), um texto anterior àquelas recensões e por elas tomado por base, o que facilita o trabalho do crítico em busca da forma primitiva.
Todavia, o exame atento e consciencioso nos revela que também o texto hebraico usado pela vetusta versão grega já estava bem afastado da primitiva pureza e integridade, e que a maioria das alterações agora deploradas no texto massorético, já existiam nos séculos imediatos ao exílio babilônico. Faltando o apoio dos LXX para emendar um texto corrompido, não nos resta senão o recurso à crítica interna, ou seja, à reconstituição conjetural. A legitimidade e a medida da aplicação destes critérios no Antigo Testamento, provam-nos alguns capítulos que, nos próprios livros canônicos, nos foram transmitidos em dois exemplares diversos. Como, por exemplo, o salmo 18 (Vulgata 17), reproduzido em 2 Rs 22 e, no próprio Saltério, o salmo 14 (Vulgata 13) repetido com o número 53 (Vulgata 52). No tocante ao Pentateuco, além disso, temos como reforço o texto conservado entre os samaritanos, pertencente a um tipo mais antigo que o massorético, abstração feita de certos acréscimos e adaptações em favor do culto deles no monte Garizim (veja Jo 4:20). O arcaísmo do Pentateuco samaritano reflete-se até na forma de escritura que eles ainda adotam. Trata-se dum descendente direto da primitiva escrita hebraica, mais próxima das origens fenícias (e portanto também de nosso alfabeto), do que o alfabeto em uso há séculos entre os hebreus. De fato, a hodierna escrita hebraica (chamada, pela forma geral das letras, quadrada) deriva do ramo aramaico do alfabeto adotado por eles na época persa (cerca do séc. V a.C) em lugar da antiga, na qual anteriormente foram escritos os livros sagrados. No exame crítico do texto original, esta mudança de alfabeto deve ser levada em conta. É o primeiro estudo a ser feito por todo bom tradutor ou intérprete da Bíblia, como de qualquer outro livro: certificar-se da leitura genuína, isto é, das palavras exatas escritas pelo autor. "O primeiro cuidado de quem quer entender a divina Escritura [sentencia Sto. Agostinho no seu magistral De Doctrina Christiana, 1.II, c. 21] deve ser o de corrigir os códices." Traduzido em linguagem moderna pelo Pontífice Leão XIII, na encíclica Providentissimus Deus, este preceito soa assim: "Examinada com todo cuidado a leitura genuína do texto, quando for o caso, passar-se-á a sondar e expor o sentido" do texto sagrado.
A vulgata. Vulgata, por antonomásia, chama-se a versão latina em uso na Igreja latina. Ela é, em sua máxima parte, obra de S. Jerônimo, doutor da Igreja (cerca de 350-420), pois resulta da união de três categorias de livros: 1° livros que ele traduziu diretamente do texto original: todos os protocanônicos do Antigo Testamento, com exceção dos Salmos, mais Tobias e Judite; 2° os livros de uma antiga versão latina por ele revista e corrigida à luz do texto grego: os Salmos, do Antigo Testamento; ao certo os Evangelhos e provavelmente o restante do Novo Testamento; 3° cinco deuterocanônicos do Antigo Testamento, que tinham ficado na antiga versão latina, não tocados por S. Jerônimo, a saber: os dois dos Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico e Baruc (com a Carta de Jeremias). Não é, portanto, inexato dizer que o termo Vulgata. comumente falando, seja sinônimo da versão de S. Jerônimo, denominando-se o todo pela parte principal e mais extensa.
O valor da vulgata. Entre os tradutores antigos da Bíblia, S. Jerônimo foi o último no tempo, embora o primeiro pelo mérito: não só por se ter podido valer dos trabalhos dos seus antecessores, mas sobretudo porque, pela prática constante, adquiriu domínio tal das línguas bíblicas (hebraico, aramaico, grego), que entre os antigos cristãos não se conhece igual. Acrescente-se um conhecimento igualmente único da literatura exegética, tanto judaica como cristã. Com uma bagagem de cultura literária incomum, com ótima preparação e excelentes critérios, pôs mãos ao árduo trabalho. Começou por corrigir (em Roma, em 384, a convite do papa S. Dâmaso) os Evangelhos latinos, auxiliado para isso pelos melhores códices gregos. Transferindo-se depois para a Palestina (386), com o intuito de levar uma vida de ascetismo e de estudo, estendeu o mesmo trabalho de paciente revisão, baseado no original grego, aos livros do Antigo Testamento; mas, tendo terminado uma parte deles, sobretudo os Salmos, que passaram depois à Vulgata, compreendeu que prestaria um serviço muito melhor à Igreja, fazendo uma nova versão diretamente do texto hebraico. E sem esmorecer diante das ingentes dificuldades, e sem se cansar no longo e áspero caminho, a ela se dedicou com admirável constância pelo espaço de uns quinze anos, de 390 a 404, até o acabamento feliz da obra. Não traduziu os livros pela ordem que têm no cânon. Começou com os livros de Samuel, aos quais antepôs o conhecido Prólogo galeato, que é como que o programa de toda a sua versão. Passou depois aos Salmos, aos Profetas, a Jó, a Esdras e às Crônicas, aos três livros atribuídos a Salomão (Provérbios, Eclesiastes, Cânticos). Em seguida, passando para o início, pôs mãos ao Pentateuco, e prosseguindo por Josué, Juízes e Rute, terminou com Ester. Não traduziu todos os livros com a mesma aplicação. Com maior cuidado traduziu e corrigiu (como se exprime ele mesmo) os primeiros livros, isto é, Samuel e Reis; os três livros ditos de Salomão concluiu-os em apenas três dias; o de Tobias, num dia; o de Judite, numa noite. Destas e de outras causas resulta certa desigualdade entre os vários livros, e também na unidade fundamental da versão. Em geral, tendo-se formado uma idéia clara do que queria dizer o autor sagrado, procurou produzi-la com a mesma clareza em latim, cuidando mais do sentido do que da letra, sem menosprezar a exigência da boa latinidade. Guiado por esses critérios, conseguiu imprimir à sua tradução, de modo geral, uma propriedade de sentido e uma beleza de expressão tais, que só se apreciam plenamente quando comparadas com as versões rivais gregas ou latinas, em geral rudemente literárias e bárbaras e, portanto, também obscuras. Todavia, também S.Jerônimo, especialmente nos primeiros livros traduzidos, às mais das vezes por veneração à palavra divina, não se afasta de um duro literalismo e por amor à clareza não foge de termos e construções vulgares; nos seus escritos originais brilha muito mais pela linguagem e pelo estilo.
Vicissitudes e Estado Atual. As traduções de S. Jerônimo não encontraram imediatamente no mundo latino a acolhida que mereciam. A propagação, devido em parte às dificuldades da época, foi lenta, mas em constante progresso, de sorte que dois séculos depois Sto. Isidoro de Sevilha (T 636) pôde escrever que ela já estava em uso em toda a Igreja do Ocidente, e mais tarde o renascimento carolíngio consagrou-lhe definitivamente o triunfo sobre as antigas versões latinas. Formou-se assim, entre o séc. V e o IX, a versão que, propriamente é chamada Vulgata: fundo jeronimiano com algumas partes da antiga latina, como evidenciamos acima. No curso dos séculos, porém, transmitindo-se em exemplares manuscritos, perdeu, ora mais, ora menos, da sua primitiva pureza, seja por causa dos copistas, seja por infiltrações de antigas versões. Não faltaram, de vez em quando, doutos e zelosos varões para opor-se à invasão corruptora, emendando o texto corrente a fim de reconduzi-lo à primitiva integridade. Digna de memória pelo valor dos resultados e pela influência eficaz a revisão efetuada por Alcuíno (801), ordenada por Carlos Magno. Mas nem sequer esta escapou à rápida degeneração, nem impediu que se formassem outros tipos de textos, sobretudo na Espanha e na Itália. Quando, no séc. XIII, afluíam à Universidade de Paris estudantes de toda a Europa, trazendo cada qual o seu texto bíblico, sentiu-se a necessidade, para uso escolar, de uniformizar os textos muitas vezes discordantes entre si; e isso foi feito, enxertando-se sobre o fundo alcuiniano as variantes dos outros. Originou-se daí um texto de valor discutível que, todavia, graças à enorme influência exercida pela célebre Universidade, teve grande sucesso e propagou-se por toda a Europa, primeiro em cópias manuscritas, e depois, inventada a arte tipográfica, também nas edições impressas.
Abd - Abdias profeta
Ag - Ageu, profeta
Am - Amós, profeta
Apoc - Apocalipse de são João
At - Atos dos Apóstolos
Bar - Baruç, profeta
Cânt - Cânxico dos Cânticos
Col - Epístola aos Colossenses
1Cor - 1° Epístola aos Coríntios
2Cor - 2° Epístola aos Coríntios
1Crôn - 1° Livro das Crônicas
2Crôn - 2° Livro das Crônicas
Ct Jer - Carta de leremias
Dan - Daniel, profeta
Dt - Deuteronômio
Ecl - Eclesiastes
Eclo - Eclesiástico
Ef - Epístola aos Efésios
Ex - Êxodo
Esdr - Esdras
Est - Ester
Ez - Ezequiel, profeta
Flp - Epístola aos Filipenses
Fil - Epístola a Filêmon
Gál - Epístola aos Gálatas
Gên - Gênesis
Hab - Habacuc, profeta
Hebr - Epístola aos Hebreus
Is - Isaías, profeta
Jd - Epístola de S. Judas
Jdt - Judite
Jer - Jeremias, profeta
Jl - Joel, profeta
Jó - Livro de Jó
Jo - Evangelho, de S. João
1Jo - 1° Epístola de S. João
2Jo - 2° Epístola de S. João
3Jo - 3° Epístola de S. João
Jon - lonas, profeta
Jos - Josué
Jz - Juízes
Lam - Lamentações
Lev - Levítico
Lc - Evangelho de S. Lucas
1Mac - 1° Livro dos Macabeus
2Mac - 2° Livro dos Macabeus
Mc - Evangelho de S. Marcos
Miq - Miquéias, profeta
MI - Malaquias, profeta
Mt - Evangelho de S. Mateus
Na - Naum, profeta
Ne - Neemias
Núm - Números
Os - Oséias, profeta
1Pdr - lª Epístola de S. Pedro
2Pdr - 2ª Epístola de S. Pedro
Prov - Provérbios
Rom - Epístola aos Romanos
1Rs - 1° Livro dos Reis
2Rs - 2° Livro dos Reis
Rt - Rute
Sab - Sabedoria
1Sam - 1° Livro de Samuel
2Sam - 2° Livro de Samuel
Sl - Salmos
Sof - Sofonias, profeta
1Tes - 1° Epístola aos Tessalonicenses
2Tes - 2° Epístola aos Tessalonicenses
Tg - Epístola de S. Tiago
1Tim - 1° Epístola a Timóteo
2Tim - 2° Epístola a Timóteo
Tit - Epístola a Tito
Tob - Tobias
Zac - Zacarias, profeta
Nas referências (nas notas e nas introduções) vírgula separa capítulo de versículo. Exemplo: Gên 10:15 = Gênesis, capítulo décimo, versículo décimo quinto. O ponto separa versículos quando não contínuos. Exemplo: Gên 10:15.19 = Gênesis, cap. décimo, versículos décimo quinto e décimo nono. O traço de união separa versículos quando contínuos. Exemplo: Gên 5:11-13 = Gênesis, cap. quinto, versículos décimo primeiro a décimo terceiro. Raramente, e só nas introduções aos diversos livros, o traço de união separa também capítulos. O ponto e vírgula separa grupos de capítulos e versículos. Exemplo: Mt 5:11-15; 8:12-18 = Mateus cap. quinto, versículo décimo primeiro a décimo quinto; cap. oitavo, versículos décimo segundo e décimo oitavo.
As coisas reveladas por Deus, que se encontram e manifestam na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do Espírito Santo. De fato, a Igreja, por fé apostólica, considera como sagrados e canônicos os livros inteiros tanto do Antigo como do Novo Testamento, com todas as suas partes, porque, tendo sido escritos por inspiração do Espírito Santo (cf. Jo 20:31; 2Tim 3:16; 2Pdr 1:19-21; 3:15-16), têm a Deus por autor e como tais foram confiados à própria Igreja. Todavia, para escrever os Livros sagrados, Deus escolheu homens, que utilizou na posse das faculdades e capacidades que tinham, para que, agindo Deus neles e por meio deles, pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que Ele quisesse.
Portanto, como tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos se deve ter como afirmado pelo Espírito Santo, por isso mesmo havemos de acreditar que os Livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade relativa à nossa salvação, que Deus quis fosse consignada nas sagradas Letras. Por isso, 'toda Escritura divinamente inspirada é útil para ensinar, para argüir, para corrigir, para instruir na justiça: a fim de que o homem de Deus seja perfeito, experimentado em todas as boas obras' (2 Tim 3:16-17 gr.).
Mas como Deus na Sagrada Escritura falou por meio de homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis nos comunicar, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e aprouve a Deus manifestar, por meio das palavras deles.
Para descobrir a intenção dos hagiógrafos, devem-se ter em conta, entre outras coisas, também os 'gêneros literários.' A verdade é proposta e expressa de modos diferentes, segundo se trata de textos históricos de várias espécies, ou de textos proféticos ou poéticos ou ainda de outros modos de expressão. É preciso, então, que o intérprete busque o sentido que o hagiógrafo - em determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura - pretendeu exprimir e de fato exprimiu usando os 'gêneros literários' então em voga. Para entender retamente o que o autor sagrado quis afirmar por escrito, deve-se atender bem quer aos modos peculiares de sentir, dizer ou narrar em uso nos tempos do hagiógrafo, quer àqueles que na mesma época costumavam empregar-se nos intercâmbios humanos.
Mas, como a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com a ajuda do mesmo Espírito que levou à sua redação, ao investigarmos o sentido bem exato dos textos sagrados, não devemos atender menos ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura, tendo em conta a Tradição viva de toda a Igreja e a analogia da fé. Cabe aos exegetas, de harmonia com estas regras, trabalhar para entender e expor mais profundamente o sentido da Escritura, para que, graças a este estudo de algum modo preparatório, chegue a termo o juízo da Igreja. Com efeito, tudo quanto diz respeito à interpretação da Escritura está sujeito ao juízo último da Igreja, que tem o divino mandato e ministério de guardar e interpretar a palavra de Deus.
Portanto, na Sagrada Escritura, salvas sempre a verdade e a santidade de Deus, manifesta-se a admirável 'condescendência' da eterna Sabedoria, 'para nos levar a conhecer a inefável benignidade de Deus e a grande acomodação que usou nas palavras, tomando antecipadamente cuidado da nossa natureza' (S. João Crisóstomo).
As palavras de Deus, expressas em línguas humanas, tornaram-se intimamente semelhantes à linguagem humana, como outrora o Verbo do Eterno Pai, tomando a carne da fraqueza humana, se tornou semelhante aos homens.
A inspiração bíblica, segundo o conceito católico, não é uma moção mecânica, nem um ditado, como se o autor humano fosse passivo e nada de próprio assentasse no livro inspirado. Não, a força inspiradora age no homem de maneira digna dele, condizente com sua natureza de criatura inteligente e livre. Antes de tudo, a inspiração é uma luz intelectual, que, ou descobre ao homem aquilo que antes ignorava (e então tem-se a revelação), ou com novo esplendor lhe apresenta aquilo que já sabia. Sob a sua ação, a inteligência humana não é perturbada, não perde a consciência de si, como afirmavam os antigos acerca dos oráculos pagãos; pelo contrário, é mais do que nunca lúcida e inteligente. Nem a vontade é arrastada à força contra a sua inclinação; antes, mais do que nunca livre, segue dócil e espontaneamente o impulso divino. A ação inspiradora estende-se a todas as faculdades do homem, a todas as suas ações empregadas ao escrever, até à redação completa; mas a todas e a cada uma toca e dirige segundo a natureza de cada uma e segundo a parte que tomam no trabalho complexo de escrever. Daí se segue que a inspiração não suprime nem atenua a personalidade do escritor humano, e nos vários livros da Bíblia pode-se ver refletida á índole e o estilo de cada autor.
De tudo o que aqui deixamos exposto, concluímos logicamente qual deve ser a nossa atitude a respeito da Palavra divina sempre "fiel e verdadeira." A fé nos faz ver que o próprio Deus, Criador e Senhor do universo é o autor de toda a Bíblia e que Ele a escreveu com imenso amor para com suas criaturas que peregrinam por este mundo para guia-las e salva-las.
A essas criaturas por todos os títulos impõe-se o espontâneo dever de ler a maravilhosa coleção de cartas que seu Deus lhes enviou.
O homem na terra é o endereçado da Bíblia. Urge que se prostre diante de Deus que dele se lembra e que lhe escreve, lendo com perfeita docilidade e adoração a sua Palavra. Urge que, sentindo-se alvo de um amor infinito, corresponda a esse amor ao menos com todo o afeto filial de que é capaz. Urge que procure na Bíblia as normas que o levem ao seu Salvador divino, Jesus Cristo, que de suas plenitudes pode encher todos os vácuos de sua alma.
Com São Paulo (Rom 15:4) todo aquele que crê pode prelibar perenemente nas muitas vicissitudes da vida terrena "as consolações das Escrituras."
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